terça-feira, 20 de maio de 2014

O filho que todos desejam ter


Ontem sintonizei a RTP 1, num acidente de zapping. Para cúmulo do azar, era a Fátima Campos Ferreira, cuja actuação durante o governo socialista foi a que todos sabemos. Normalmente soltaria um "CHIÇA! PENICO!" precipitado, e mudaria de canal.

Falava um rapaz, louro arruivado, que me chamou a atenção, porque o tema do Prós & Contras era o "Racismo" e não percebi a que "raça" ele pertencia. Até ele ter dito que era cigano. Um rapaz inteligente, escorreito das ideias, ao que tudo indica honesto e trabalhador. Do tipo 'o filho que todos desejam ter'. Os amigos, depois de saberem que ele é cigano, costumam mudar de atitude. Deixa de ser uma pessoa, deixa de ser o Pimério (se bem entendi o nome) e passa a ser O Cigano. E causa receios e anticorpos.

A discriminação pôs-lhe o doloroso desafio de se "assumir" como cigano. Antes que os outros descubram, ele deixa sinais suficientes para que decidam se querem chegar a aproximar-se dele, ou se mesmo assim o querem afrontar.

À dor de se deixar de ser uma pessoa (como lembrou Francis Obikwelu, também presente no programa), para se passar a ser uma "raça", o Pimério prefere a dor da rejeição pura e simples ou da hostilidade aberta.

Ah, a dor e a injustiça. de alguém ter de se "assumir", como seja o que for...

Em 1496, os povos rom (ciganos) da Alemanha, foram declarados traidores para com os países cristãos, espiões a soldo dos turcos, portadores da peste, bruxos, bandidos e sequestradores de crianças. É fácil, ainda hoje, em qualquer aldeia portuguesa, encontrar quem assegure que os ciganos deitam o mau-olhado, roubam as crianças, e que são "bichos" - que não são humanos.

Ninguém nega que os "realojamentos" de comunidades ciganas se saldam quase sempre por desastres. Ninguém nega que as novas gerações de ciganos albergam uma grande percentagem de delinquentes, e mesmo criminosos. Ninguém nega que os ciganos são, em muitos casos, hostis aos não ciganos. Ninguém nega as tropelias que os ciganos romenos andam a fazer pela Europa, desde que a Roménia entrou na União. Ninguém afirma que o povo cigano não tem maus elementos. Eu afirmo que a espécie humana, tem maus elementos.

O Pimério não tem culpa da percentagem de jovens ciganos fora da lei. Nem ele nem todos os ciganos que, enfrentando grandes obstáculos, seguem o caminho da rectidão. Explica ele que há leis em alguns municípios que limitam a presença de ciganos a 24 ou 48 horas. Que é dificílimo arranjarem quem lhes alugue casa. E que, em face disso, é ignorância atrevida recriminarem os ciganos por não mandarem os filhos à escola.

O Pimério teve que optar entre a frigideira de os outros "descobrirem", e o fogo do "assumir". A terceira possibilidade seria esconder que é cigano. E talvez ouvir, em silêncio amargurado, que "os sacanas deviam ser todos exterminados". Nasceu cigano, não teve escolha. Como os seus antepassados, que pagaram por tantas vezes o preço de terem nascido ciganos, de estarem em minoria, de serem mal compreendidos, de sofrerem com as generalizações, de servirem de escape para as frustrações alheias, de serem o papão de que muita gente precisa para dar mais sabor à noite, no quentinho da cama, em segurança, atrás de sete trancas, enquanto lá fora ciganos quiméricos rondam as galinhas do galinheiro.

Ao seu lado, os país. Não quiseram falar. baixam o olhar e sorriem. Algum fedelho nazi e boçal é capaz de soltar a boutade habitual: que se fosse verdade, não estariam a sorrir. É o que dizem deste senhor, que sobreviveu aos campos de concentração, onde esteve enjaulado na condição de "bicho" judeu. Há quem não tenha discernimento ou experiência de vida para compreender um sorriso amargo.

Eu sei que os ciganos não fizeram muitas invenções tecnológicas nem muitas descobertas científicas, caro fedelho nazi e boçal. É um bocado difícil para um nómada ter um laboratório na caravana e sair de lá uma manhã com o primeiro tubo de raios catódicos, ou com um modelo do Bosão de Higgs a cheirar a novo. Mas tu, que dormes até às duas da tarde, passas o dia em pijama e vais para a esplanada do café ao raiar da noite, com ar ameaçador, já inventaste ou descobriste o quê?

Os pais do Pimério recusam falar, com um imenso pudor. Divididos entre o enorme orgulho no seu filho, e a sombra inapagável que o perseguirá toda a vida. O Pimério foi concebido como qualquer ariano médio dos Olivais Sul. Talvez tenha sido é num cenário diferente. Talvez numa noite de Lua Cheia, numa planície do Alentejo, com o rumorejar das águas ao fundo. Talvez tenha sido numa na Reboleira, antes do raiar de mais um dia de sol e da partida para mais uma feira.

Os pais do Pimério também desejaram a lua e as estrelas para ele. A mãe também o embalou com todo o amor do mundo. O pai fez muitas horas extraordinárias a vender, a labutar, para dar ao filho a lua e as estrelas que sonhou para ele, como qualquer Pai. Tudo igualzinho a qualquer ariano médio dos Olivais Sul, a qualquer parasita boçal que uma destas noites é capaz de apanhar o Pimério a sair do trabalho, e atacá-lo, pelo atrevimento de ele ter nascido.

Os pais sorriem de orgulho, e sorriem porque não podem chorar, pelos cuidados que sentem pela luz dos seus olhos, ainda tão novo, e já com tanto em cima dos ombros. Sorriem porque se perguntam, lá no fundo, se a realização do seu amor não foi um peso grande demais para aquele que verão sempre, sempre, sempre, como um menino.

Os ciganos, como os judeus, sabem cantar e dançar, sabem rir e sorrir. Valha-lhes isso.

Hoje choveu.


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Amor, Reina Sobre Mim


Apenas o amor
Pode fazer chover
Como a praia é beijada pelo mar
Apenas o amor
Pode fazer chover
Como o suor dos amantes
Deitados nos campos.

Amor, reine sobre mim
Amor, reine sobre mim, chova sobre mim

Apenas o amor
Pode trazer a chuva
Que te faz desejar o céu
Apenas o amor
Pode trazer a chuva
Que cai como lágrimas lá do alto

Amor, reina sobre mim

Na árida e empoeirada estrada
As noites que passamos separados e sós
Eu preciso voltar para casa, para a fresca fresca chuva
Não consigo dormir, então deito-me e penso
A noite é quente e negra como tinta
Ó Deus, eu preciso de uma dose da fresca fresca chuva

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